25.5.12

Entre elas


Sílvia tem 75 anos. Maria tem 76. As duas já se conheciam de vista há mais de meio século. Hoje são as poucas teimosas que continuam com seus casarões a moda antiga em um bairro que já é todo comercial. Quando se mudaram para ali, as duas pela década de 40, tudo era bem diferente: do bairro a vida. Maria e Sílvia tinham marido, três filhos pequenos para criar cada uma, o trabalho de costureira para Sílvia e o de dona de casa muito cobrada pelo marido impaciente para Maria.

Quando a vida era assim movimentada, a amizade das duas se restringia àquele cumprimento tímido nos encontros no mercadinho da rua da Sílvia, na feira livre semanal que ainda acontece toda quinta na rua da Maria, ou em uma ou outra festa da vizinhança. Foi a pouco mais de 10 anos que as coisas mudaram. Os filhos cresceram, as duas ficaram viúvas e deixaram de trabalhar. Os dias começaram a ficar mornos, de um jeito que só sabem os maiores de 60, e o companheirismo veio para dar gosto à calmaria.

As idas ao mercadinho passaram a ser combinadas para que as duas pudessem papear enquanto escolhiam as compras. A feira virou pretexto para um pastel bem gorduroso, subvertendo juntas às prescrições médicas. De tão morna, a tarde se tornou o momento ideal para as duas tomarem o café com pão quentinho. A Maria dava a casa e o café. A Sílvia passava na padaria e levava o pão quentinho. Uma casa fica a menos de uma quadra da outra, o que sempre facilitou os programas.

Depois do café, cada uma ia para sua casa, preparava o jantar e já se vestia. Todo dia, mal a noite chegava e as duas já estavam sentadas na calçada da Maria, acomodadas nas confortáveis cadeiras de espreguiçar, conversando. Ali, elas falavam sobre as novelas, os famosos, o passado, a solidão, os filhos crescidos, os netos pequenos e tudo quanto desse na telha.

Quando uma ficava doente e tinha que cancelar o encontro, a outra era só reclamações. Aos poucos, outras vizinhas começaram a participar de um ou outro momento. Houve dias em que a calçada da Maria reunia três, quatro, cinco velhinhas dispostas a bater papo e olhar o movimento. As duas, entretanto, sempre foram as melhores amigas. Quando as outras iam embora, elas aproveitavam para comentar uma fofoca sobre a vizinhança que deveria ser guardada só a duas chaves. Maria era geniosa e Sílvia reclamona, mas como as duas se davam bem!

E tudo foi bem assim até três anos atrás. Maria já bem dizia que quando a idade vem é difícil fugir das consequências do seu tempo. Numa tarde como outra qualquer, ela passou mal. Sentiu o corpo formigar. Desmaiou. Foi derrame. Maria ficou semanas na UTI. Os médicos desenganaram e já avisaram:

- Se sobreviver, vai ficar com sequela.

Sílvia sofreu junto com família e celebrou cada melhora. Sem a companheira de papo, passou a saber da programação de TV como nunca. Mas a recuperação foi vindo. Quando voltou para casa, Maria não falava e nem andava. Mas, com força e reza, as coisas foram melhorando. Foram meses de aflição. De lenta e progressiva recuperação. 


Desde o dia em que Maria pisou de novo em casa, Sílvia voltou ser visita constante. Mesmo sem que a amiga pudesse responder-lhe, ela ia até a casa, levava o pão quentinho e contava para ela sobre as muitas novidades que tinha visto na TV em todos esses meses de ausência. Sílvia é querida pelas enfermeiras que se revezam para cuidar da Maria. Todas a conhecem e ela, por sua vez, vistoria o trabalho de todas. Palpita e exige que tratem a amiga bem. Caso contrário, não tem pudores em reclamar com os filhos da Maria. Pedir para trocar de enfermeira.

Hoje, Maria está melhor. Anda com certa dificuldade, mas consegue sair da cama. A fala, entretanto, ainda não voltou. O máximo que consegue é fazer ruídos com a boca quando quer dizer algo. Sabe gritar e chorar também.

Sílvia garante que ela entende tudo o que vê. Que ela é consciente do mundo à volta. Bem por isso, ela não desiste dos cafés e das noites de papo. Pela saúde mais frágil de Maria, não dá para fazer os dois todos os dias. Um deles, no entanto, é sagrado. Ou o café ou à noite na calçada: depende do tempo. A enfermeira que cuida da Maria prepara o café quando a visita é à tarde ou acomoda Maria na cadeira da calçada quando o encontro é à noite.Sílvia conta cheia de alegria cada melhora que percebe na amiga. Comemora cada ruído mais forte. Garante que ela a entende e ai de quem duvidar. As duas papeiam da forma delas. Sílvia fala, Maria olha, faz ruídos balança a cabeça. Às vezes, a enfermeira entra na conversa também.

Na semana passada, Sílvia ficou gripada. A enfermeira achou melhor ela ficar uns dias sem visitar a amiga. Pela a saúde frágil da Maria, é melhor evitar qualquer perigo. Sílvia atendeu ao pedido, mas já sabia que viria confusão.No primeiro dia sem a visita da amiga, Maria ficou impaciente, mas a enfermeira conseguiu entretê-la. No segundo, não teve jeito. Depois do almoço, já começou a se agitar de novo à espera da visita que não veio. Era fim de tarde e nada. Quando o sol caiu, e ela teve certeza de que a amiga não vinha, caiu no choro. Chorava sem parar. Era tanto desespero, que a enfermeira não viu outra solução: colocou a Maria na cadeira de rodas e levou até a casa da Sílvia. Pronto. Estava resolvido o problema.


 Ao ver a amiga, Maria se acalmou e já começou os ruídos. Os primeiros foram fortes, repreendendo a ausência da outra. Os outros, já foram de conversa. Naquele dia a calçada foi outra, mas o companheirismo não muda. É sempre o mesmo.