9.2.10

Os sapatos de plástico talvez morram

A primeira cena que chama os meus olhos é um homem velho segurando sapatos de mulher nas mãos e aflição nos olhos. Foi preciso que a mulher desmaiasse para que o centro público de saúde a atendesse. A indignação foi embora no mesmo instante em que o medo de perder a companheira se fez presente. Daí, o homem já não se preocupava com nada além de tê-la de volta. Se os dois passaram a tarde a esperar atendimento, se a febre dela era tanta, se faltaram médicos, se não há o que culpar, já que o estado é uma torta de frutas podres por todos os lados... Nada disso tinha mais importância. Pedimos que ele tirasse uma foto para divulgar, na matéria do jornal, a falta de atendimento. Ele apenas balançou a cabeça em consentimento. O sofrimento estava estampado naqueles olhos, naquelas mãos que grudavam entre os dedos o sapato de plástico. E apertavam, mexendo apenas os dedos da mão e olhando fixo o corredor que levava às salas médicas. A carência do ser humano é facilmente flagrada e já não causa tanta surpresa; o amor entre os seres humanos, em meio a toda carência a que eles estão submetidos faz até as almas canonizadas repensarem a existência. Aquele homem esperava sua companheira com a mesma aflição que os haitianos esperam o resgate de seus familiares amados por quase um mês. Da mesma forma que as vítimas das chuvas esperam seus queridos voltarem, talvez na próxima enchente. As chuvas, os terremotos, as doenças, o governo, o descaso, a injustiça tentam semear o descontrole entre a humanidade. Quando meus olhos se deixam chamar por uma cena de carinho em meio ao desespero, é um sinal de que o ser humano fala “não” ao descontrole, e segura, com a força dos que buscam a vida, sua essência celestial.