24.11.09

Eco

Sejamos sinceros – ainda há de se acreditar nos bons sentimentos – não é um monstro. Os dias com excesso de sol e as noites com falta de chuva é que fizeram do habitual uma incrível monstruosidade. O fato é que não há mais volta: é um monstro, agora. Cruel de tanto doce; injusto de tanta sensatez; gélido de tanto calor dissipado. Ele corre a passos largos e lentos – a lentidão é a única possibilidade que ele me deixa de fuga. Vem em minha busca e eu sei que agora há de ser a vez definitiva: ou lhe deixo ou me deixo aprisionar de uma vez. Ele me agarra os pés; faz tentativas incessantes de retardar meus passos curtos e apressados – que ele não saiba, mas retrocedo mil passos cada vez que ele deixa seu perfume em mim - monstro sofisticado. Eu corro num ritmo fragmentado: é difícil convencer alma e corpo de algo que nenhuma parte de si quer. A alma não sabe fugir. Audaciosa, enfrenta monstro-a-monstro, irradiando luz a cada vitória. Quando dou por mim, meus dias resumiram-se a um correr contínuo – que esconde seus reais motivos entre o cotidiano de geração modernizada. Cada fim que encerra o dia é uma etapa a menos para os joelhos, que ameaçam uma dor sincronizada e para a mente, que dá sinais de sonolência intransigente. De repente, as bandeiras são hasteadas. Faz silêncio. É a vitória: a razão triunfa sem alardes. Vencemos a corrida. O monstro. Perfume. Olhos. Saudade. Acalanto. Tudo ficou à km de distância. A tranqüilidade é verde e tem cheiro de mãe e pai. Pronto. Podemos comemorar. A sala está vazia agora, tem bastante espaço para a comemoração. A razão, no entanto, não se deixa acometer. A sala está vazia e a pista de corrida também. Talvez eu não soubesse que toda a fuga terminaria no vazio. (...) A sala está vazia agora. A paixão e o monstro se calaram em sintonia. A vitória da razão não curou nenhum machucado. Continuam aqui os arranhões que eu mesma fiz – não podemos culpar o monstro, ele nem mesmo existe. O fim é onipresente e ignorá-lo é opcional. As nuvens não fizeram nenhum sentido e de nada adiantou esperar que a vida o fizesse. O monstro ficou para traz. (...) Eu penso em encontrar um jeito paliativo. Quanto mais penso, mais descubro a eficácia de deixar estar. A dor só passa depois que dói, assim como o fantástico do encontro só passou depois que o vivemos até sua última gota – ou terá sido a falta de deixar-nos viver até a última gota que deu monstruosidade ao que era habitual? A sala está vazia agora. E eu também.

22.11.09

Entre maiúsculas e minísculas

O natal já alcançou os individuos mais isolados – seja por pedregulhos, vidro ou esponja. Em algum momento todos já estivemos debruçados pela escadaria de um shopping – ou qualquer outro edifício – gastando os pulmões a exigir um aceno qualquer do homem barbudo que mais parece a materialização da ternura. Talvez seja essa esperança de esperar o realizável que faça todos acreditarmos no natal e no velhinho simpático. Em meio à pipoca e algodão doce o papai noel pousa em seu helicóptero no centro de compras da cidade. A multidão de crianças faz com que, de fato, os desinformados se atentem ao fato de que está chegando uma grande celebridade. A musica natalina é viva: a banda de blues, vestida à altura – chapeuzinhos pretos na cabeça, calça e camisa, detalhes em verde e vermelho, juntos aos instrumentos dourados - tem o repertório do natal e passeia pelo shopping espalhando as notas sopranas. As vozes infantis não cessam. O silêncio foi convidado - sem grandes gentilezas, havemos de admitir – a se retirar. Todos acreditam: pais e filhos; adultos e crianças, turistas e desinformados. A esperança é quase palpável nos olhos de todos que presenciam o momento do encontro mais concreto entre imaginário e realidade. Tudo vai se resolver na noite de natal. O velhinho não irá nos desapontar. Nós sabemos que o clima de confraternização embalado pelo acalento do “homem-ternura” e pelo desligar dos fios que ligam o homem à dinâmica desenfreada do mundo fazem com que todos acreditem. Acreditar é o primeiro passo para a realização. As crianças gritam e desesperam-se, um desesperar acreditado. No fundo, só querem demonstrar para os olhares curiosos – ou, raras exceções, incrédulos - o quanto aquele momento representa para elas. O papai Noel – suado e um pouco inebriado – repete as mesmas frases combinadas. Às vezes faz alguns comentários singulares (por sorte, quase ninguém percebe e, assim, evitamos crises de ciúme). No fundo, percebemos que ele também entra no clima – e, quem sabe, até esquece o aumento no salário que aquele safanão que a criança mal educada lhe deu pode proporcionar. Ele quer acreditar que saiu de uma casinha rodeada de neve, lá no Pólo Norte – e não de quatro paredes de concreto e transbordante de necessidades terrenas. Quando a gente pensa que está acabando, eis que aparecem dois duendes. O palhaço que já circulava pelo lugar quase não teve audiência. Para desviar, pelo menos em partes, as crianças e o sufocamento por asfixia e gritaria aguda do Papai Noel, eles chamam os duendes. Dois. Vestidos com roupas esquisitas e portando grandes orelhas. Mesmo eles parecem felizes com o papel bizarro. Um requebra todo, tentando imitar os movimentos lentamente cósmicos que fazem os duendes dos filmes. As crianças enlouquecem, gargalhadas para todo lado – tirando a menina de cabelos cacheados e olhos amendoados, que, sabe-se lá por qual motivo, inventou de ter medo e chora sem parar com vontade de sair correndo dali. A mãe tentando acalmar, o sorvete derretendo em meio às lágrimas (o jeito - já podemos prever - será ir pra casa). Num momento, do modo automático, alguém olha no relógio. Um pai passa gritando com a menina que não quer ir embora. A mãe – descontrolada, talvez seja a música – passa correndo em busca da menininha pentelha e fugitiva que, com pequenas perninhas, consegue deixá-la ofegante de tanto correr. O relógio novamente. Fica claro que logo o encontro mais concreto entre imaginário e realidade vai derreter junto ao algodão doce. A crença do realizável vai-se indo junto ao tic-tac do relógio, que volta com toda força. E, numa triste cumplicidade, quando os pés pisam o limite entre a porta do shopping e rua, todos retomamos a sanidade: “Não, Papai Noel não existe e o Natal é mais um artifício da sutileza econômica” – até que se acende o primeiro pisca-pisca e tudo recomeça ...

5.11.09

Névoa

Existe um calabouço inabitável. Lá a criança só faz chorar porque as dores da vida só fazem doer alguns ainda trazem as lembranças desse passado negro - por onde, em algum momento, nos primórdios da escala evolutiva, já estivemos a suportar. Lamentemos a triste retrocidade humana. (...) Que um dia possam voar os pássaros - que ainda se enxergam como ratos - e pensam habitar os inóspitos calabouços.