30.9.11

Prazer em conhece-la, dona Maria!

*Essa história foi publicada no jornal Bom Dia Bauru, no dia 25.

Dona Maria tem um sorriso contagiante. Desde o nosso primeiro contato, na porta de seu barraco na favela do Jardim Ivone, essa foi a primeira impressão que ela me passou. Durante todo o dia em que passamos juntas, na missão de apresentá-la a Bauru, eu pude reafirmar a primeira impressão, apesar de ainda guardar dúvidas sobre os motivos que fazem essa mulher, cuja história de tão amarga me fez repensar o mundo, guardar tanto doce dentro de si e doá-lo a quem se aproxime. 

Maria Cícera de Jesus de Santos, 59 anos, nasceu em uma cidade do interior do Alagoas, tem 9 irmãos espalhados pelo Brasil, 2 filhos vivos – uma delas adotiva, 3 filhos que morreram ainda criança, 8 netos e um cachorro. Há 8 anos ela veio para Bauru viver com os filhos que há 10 anos vieram tentar a vida. A passagem, em uma van, saiu R$165 por 3 dias de viagem, algumas dores na coluna e o alívio de reencontrar a família. "Eu fiquei em depressão sem os meus filhos por perto". 

Na imaginação, ela trazia a ideia de uma vida diferente. Em Alagoas, cresceu em meio ao trabalho pesado, à seca e à "desgraceira". De pequena, perdeu um irmão de fome. De grande, três filhos por falta de médico. Foi criada pela avó porque fugiu da casa da mãe que, além de bater muito, "não alimentava, não punha roupa na gente e nem arrumava o cabelo". Na casa da avó, as palmadas continuaram mas, pelo menos, tinha comida e roupa limpa. Desde pequena até bem grande trabalhou em tanta coisa que se atrapalha quando vai contar. "Eu fazia a lida na roça, cuidava de ovelha, tirava leite de cabra, buscava água nas costas em um lugar longe, longe, limpava a casa, fazia de tudo". 

Quando chegava o tempo de estiagem, exatamente como a gente vê em filmes e lê em livros que retratam o sertão, a família de Dona Maria tinha que procurar outro lugar para ir. " Todo mundo arrumava a trouxa de roupas e andava até encontrar um lugar". E, nessa rotina diária da luta pela sobrevivência, ela deixou pra trás o seu maior sonho. "O que eu mais queria era aprender a ler e escrever. Minha vó botou na escola, mas tirou em um mês. Ela dizia que não era para mim". 

Talvez por essas e outras, ela não tenha se decepcionado tanto quando percebeu que a vida por aqui seria diferente, mas não boa. O barraco da Dona Maria tem três comodos e alguns móveis que ganhou em doação. Quando chegou por aqui ela trabalhou pegando recicláveis na rua. As heranças de uma vida inteira de trabalho pesado começaram a aparecer. "Eu travei a coluna. Fiquei dias de cama e hoje não posso mais trabalhar com isso". Agora, ela cuida do barraco e vive de de bolsa família. A renda mensal é de R$150 para comer, beber, vestir, calçar, passear e ajudar os filhos. Um dos netos, o Ronildo, 10 anos, é seu companheiro. E, assim, o dinheiro tem que dar para os dois.

Tão pouco recurso fez com que há 8 anos vivendo em Bauru, Dona Maria desconhecesse a cidade. O único passeio que fez – e não esqueceu mais – foi ao zoológico e ao cinema com a professora da escola que, logo quando chegou, dona Maria frequentou para tentar realizar aquele sonho antigo. "As coisas foram complicando e eu precisei parar a aula de novo", lamenta. "Você sabe como são as coisas, minha filha, a gente quer sair, planeja, mas acaba comprando uma coisa e outra e quando vê o dinheiro acabou".

Pois é. A gente pensa que sabe como é. Mas eu, na verdade, descobri que não sabia. Ao longo do dia, fui percebendo como são essas coisas ao ver a alegria de dona Maria descobrindo o Vitória Régia, com seu lago e sua garça branca que, percebendo a admiração quase infantil dessa mulher, fez pose e alçou voos de um lado a outro. Fui percebendo como são as coisas quando vi a emoção dela ao chegar perto de um avião, no Aeroclube da cidade. "Esse negócio vai lá no céu mesmo, moço? Ah, mas eu não subo nesse troço não". E descobri, de fato, como as coisas são quando ela, emocionada, me abraçou no final do dia e disse, como que para me aliviar do peso de não poder mudar muita coisa na história triste que ela havia me contado, "Eu sou muito feliz vivendo por aqui. Tristeza era o que passava por lá, minha filha". 

Foto: Cristiano Zanardi - Jornal Bom Dia

Foto: Cristiano Zanardi - Jornal Bom Dia

21.9.11

Com quantas rodas se conhece o mundo?

Azul e Tobias apostam em duas. 

Eu os conheci em uma tarde fria e ensolarada, dessas que eu só descobri que existiam na Argentina. O convite para a Flia de Paraná (Feria del Libro Independiente) foi feito na universidade, sem muita insistência, descrições ou pompas. "Passem por lá. É interessante". De fato, interessante é a roupagem ideal para o encontro entre escritores, artesãos, poetas, músicos e curiosos independentes de toda burocracia que impede a publicação e divulgação artística. Porque essa é a ideia da Flia, mostrar que é possível produzir e viver da sua arte. 

No início, me contaram dois dos organizadores da edição de Paraná (cidade em que vivi por 6 meses, na província de Entre Rios), a ideia era se contrapor a Feira Nacional do Livro de Buenos Aires. "Eles cobravam muito caro pela entradas. Decidimos expor nossos livros nos portões da feira deles, sem cobrar nada do público", conta a organizadora Melania Peirano. O que era revolução, foi ganhando força, adeptos e autonomia. Hoje, a feira se espalhou por todo o país, ganhou adeptos nacionais e internacionais e descobriu seu real objetivo. "Não queremos mais contrapor. Queremos promover a expressão indepente e livre".

Assim, há cerca de 7 anos, a cada mês uma cidade argentina vira sede do encontro e recebe artistas variados. Há quem participe de edições esporádicas e há aqueles que seguem a feira por todo o país. Azul e Tobias descobriram no encontro uma maneira de ganhar, além de amigos, o dinheiro que sustenta o dia. Quando eu os conheci, fazia 4 meses que eles haviam iniciado a viagem. Agora, já contam 7 meses na estrada. O meio de transporte é bicicleta e a ideia é encontrar a liberdade que existe na auto-gestão. 

Azul Gelman Frieyro, 26 anos, estudava comunicação social na Universidade de Buenos Aires. Conheceu o viajante, como ele mesmo gosta de se titular, Tobias Bandzerewiz, em uma das idas dele a capital argentina. "Ele me motivou a fazer algo que eu sempre quis". Tobias já viajava há 6 anos, vivendo de suas muitas artes: macramê, artesanato, culinária. Ela, assim como a maioria de nós, guardava por debaixo do papel de boa filha e ótima aluna uma vontade imensa de descobrir o mundo. A união foi o primeiro pontapé. Os dois decidiram seguir viajem juntos. Em duas rodas. 

O primeiro desafio – e a parte da história em que eu mais me emocionei, talvez porque na época eu estava longe de casa há 3 meses e já contava os dias para rever minha mãe – veio logo depois de decidido o plano. "Eu não tinha nem mesmo bicicleta", me conta rindo de si mesma. A solução veio com a mãe. Azul havia presenteado a mãe com uma bicicleta há algum tempo, mas a mãe quase não a usava. A proposta era de que a mãe lhe desse de volta o presente. A contraposta, no entanto, foi de uma sabedoria singular. "Ela me olhou firme e disse: 'Eu não vou te dar a bicicleta. Eu te empresto, porque quero ter certeza de que um dia você vai voltar para me devolve-la". 

E assim, com a palavra dada de que um dia voltariam, os dois sairam pela estrada celecionando grandes experiências. "Tem dias que não tem o que comer, então temos que arrumar um jeito de trocar trabalho por comida. E aí, vale um pouco de tudo: lavar, cozinhar, escrever...", conta ele. O frio também é um grande vilão dos "pedalistas". Na Argentina, a maior parte do tempo faz frio – muito frio. "Ele é um dos maiores problemas, mas a gente dá um jeito", conta ela. 

As boas coisas do caminho, me garantem os dois, superam todo o contratempo. "A liberdade é o preço e sacrifício". Com muita certeza, eles me dizem que a cada situação ruim vem uma boa pessoa para compensar e me fazem acreditar que o desafio vale a pena. Tudo o que tem, agora, são duas bicicletas - uma delas emprestada - e algumas sacolas que levam amarradas ou penduradas na cestinhas do guidão. Ainda assim, com muita certeza eles vão me convencendo de que o desafio vale – e muito a pena. "A decisão está dentro de você, basta animar-se e animá-la também". 

Quando eu pergunto sobre planos para o futuro – talvez sem entender ainda muito bem o que toda aquele libredade representa – Azul sorri achando, de fato, graça. "A ideia é não ter planos". Mas, logo depois, deixa escapar aquele pedacinho de planejamento que – assim como a vontade de conhecer o mundo – cada um de nós guarda em si. "Até porque, é complicado. Pensar em ter filhos, por exemplo, por agora, seria inviável. Uma criança não pode conviver com frio e com a possibilidade de não ter onde comer ou dormir". Ela então decide: "Bom, sendo assim, nosso único plano agora é chegar até a Bolívia".


Na última vez que falei com Azul, eles já estavam na Bolívia e pensavam em fazer uma visita à família em Buenos Aires. as, não seria dessa vez, ainda, que ela devolveria a bicicleta. "É uma visita passageira. Continuaremos nossa viagem". 

PS: As fotos virão mais tarde. Prometo!