*Essa história foi publicada no jornal Bom Dia Bauru, no dia 25.
Dona Maria tem um sorriso contagiante. Desde o nosso primeiro contato, na porta de seu barraco na favela do Jardim Ivone, essa foi a primeira impressão que ela me passou. Durante todo o dia em que passamos juntas, na missão de apresentá-la a Bauru, eu pude reafirmar a primeira impressão, apesar de ainda guardar dúvidas sobre os motivos que fazem essa mulher, cuja história de tão amarga me fez repensar o mundo, guardar tanto doce dentro de si e doá-lo a quem se aproxime.
Maria Cícera de Jesus de Santos, 59 anos, nasceu em uma cidade do interior do Alagoas, tem 9 irmãos espalhados pelo Brasil, 2 filhos vivos – uma delas adotiva, 3 filhos que morreram ainda criança, 8 netos e um cachorro. Há 8 anos ela veio para Bauru viver com os filhos que há 10 anos vieram tentar a vida. A passagem, em uma van, saiu R$165 por 3 dias de viagem, algumas dores na coluna e o alívio de reencontrar a família. "Eu fiquei em depressão sem os meus filhos por perto".
Na imaginação, ela trazia a ideia de uma vida diferente. Em Alagoas, cresceu em meio ao trabalho pesado, à seca e à "desgraceira". De pequena, perdeu um irmão de fome. De grande, três filhos por falta de médico. Foi criada pela avó porque fugiu da casa da mãe que, além de bater muito, "não alimentava, não punha roupa na gente e nem arrumava o cabelo". Na casa da avó, as palmadas continuaram mas, pelo menos, tinha comida e roupa limpa. Desde pequena até bem grande trabalhou em tanta coisa que se atrapalha quando vai contar. "Eu fazia a lida na roça, cuidava de ovelha, tirava leite de cabra, buscava água nas costas em um lugar longe, longe, limpava a casa, fazia de tudo".
Quando chegava o tempo de estiagem, exatamente como a gente vê em filmes e lê em livros que retratam o sertão, a família de Dona Maria tinha que procurar outro lugar para ir. " Todo mundo arrumava a trouxa de roupas e andava até encontrar um lugar". E, nessa rotina diária da luta pela sobrevivência, ela deixou pra trás o seu maior sonho. "O que eu mais queria era aprender a ler e escrever. Minha vó botou na escola, mas tirou em um mês. Ela dizia que não era para mim".
Talvez por essas e outras, ela não tenha se decepcionado tanto quando percebeu que a vida por aqui seria diferente, mas não boa. O barraco da Dona Maria tem três comodos e alguns móveis que ganhou em doação. Quando chegou por aqui ela trabalhou pegando recicláveis na rua. As heranças de uma vida inteira de trabalho pesado começaram a aparecer. "Eu travei a coluna. Fiquei dias de cama e hoje não posso mais trabalhar com isso". Agora, ela cuida do barraco e vive de de bolsa família. A renda mensal é de R$150 para comer, beber, vestir, calçar, passear e ajudar os filhos. Um dos netos, o Ronildo, 10 anos, é seu companheiro. E, assim, o dinheiro tem que dar para os dois.
Tão pouco recurso fez com que há 8 anos vivendo em Bauru, Dona Maria desconhecesse a cidade. O único passeio que fez – e não esqueceu mais – foi ao zoológico e ao cinema com a professora da escola que, logo quando chegou, dona Maria frequentou para tentar realizar aquele sonho antigo. "As coisas foram complicando e eu precisei parar a aula de novo", lamenta. "Você sabe como são as coisas, minha filha, a gente quer sair, planeja, mas acaba comprando uma coisa e outra e quando vê o dinheiro acabou".
Pois é. A gente pensa que sabe como é. Mas eu, na verdade, descobri que não sabia. Ao longo do dia, fui percebendo como são essas coisas ao ver a alegria de dona Maria descobrindo o Vitória Régia, com seu lago e sua garça branca que, percebendo a admiração quase infantil dessa mulher, fez pose e alçou voos de um lado a outro. Fui percebendo como são as coisas quando vi a emoção dela ao chegar perto de um avião, no Aeroclube da cidade. "Esse negócio vai lá no céu mesmo, moço? Ah, mas eu não subo nesse troço não". E descobri, de fato, como as coisas são quando ela, emocionada, me abraçou no final do dia e disse, como que para me aliviar do peso de não poder mudar muita coisa na história triste que ela havia me contado, "Eu sou muito feliz vivendo por aqui. Tristeza era o que passava por lá, minha filha".
Foto: Cristiano Zanardi - Jornal Bom Dia |
Foto: Cristiano Zanardi - Jornal Bom Dia |