19.8.11

Quanta história tem o seu Ocidenes?


Quando vim estudar em Bauru, há 4 anos, confesso que não trazia boas expectativas junto à muitas malas, alguns ursos de pelúcia, um tanto de livros e mais um bom tanto de medo. Nasci em São José do Rio Preto, tive uma adolescência de profunda “aborrecer” e, talvez por isso, criei a ideia de que o futuro me esperava nas metrópoles: livre e longe de casa. Sonhei com São Paulo e Campinas (cidades que não conhecia até pouco tempo) e cai em Bauru. 

Hoje, aliviada, percebo que me surpreendi e me surpreendo a cada dia. Primeiro, porque descobri que voltaria para casa na primeira semana vivendo em São Paulo. Pude conhecer a capital logo no meu primeiro ano de faculdade e me assustei. Me assustei tanto que, desde aí, comecei um preparo mental para quando – talvez, quem sabe – eu precise viver por lá. 

Depois, porque pude perceber que onde existe vida, existe história. Muita história, que não precisa estar no foco. Nos lugares onde os holofotes estão sempre acessos e os olhares sempre atentos. Percebi, e tenho uma alegria sem fim pela mudança que essa percepção provocou em mim, que cada pessoa é, na verdade, um livro de relatos profundos e únicos. 

Um desses livros me apareceu em uma manhã rotineira de estagiária de jornal. A pauta era prática: entrevistar moradores de rua de terra, saber sobre suas dificuldades. Não era a primeira vez que me aparecia pautas desse tipo. Bauru, com seus quase 360 mil habitantes e seus 670 km de extensão, abriga contrastes sociais difíceis de se acreditar. Áreas que não ficam há mais de 15 minutos do centro e que nada tem de urbanizadas ou estruturadas. 

Nessa manhã, fomos parar em um bairro popular de Bauru, Vila São Francisco. Escolhemos a rua mais intransitável que conseguimos eleger. Paramos o carro um quarteirão antes e descemos em busca de personagens. Uma menina caminhava com um bebê. Explicamos nosso objetivo e ela, muito tímida, preferiu chamar o pai. Mais que depressa, me atende Ocidenes. 

Pele morena, aparência jovem e, logo de início, um sorriso no rosto. Em 40 minutos de conversa, ele me contou sua história e me deixou com aquela sensação estranha que a gente fica quando, sem muito preparo, entra no mundo de alguém e encontra formas já vistas antes, mas sem um só pingo de atenção. 

Ocidenes de Sousa Paz, 53 anos, nasceu em uma pequena cidade do interior de Goiás. Dessas cidades que a gente não imagina que exista. Muito mato e sol e pouca oportunidade de mudar de vida. Aos 20 anos, ele veio com a família para Bauru buscar a tal da sorte. Trabalhou como pôde. Desde moleque, aprendeu a estar pronto para o trabalho. Fez bicos, ajudou o pai e, “no auge da carreira”, foi cobrador de cheques sem fundo. “As pessoas gostavam muito desse meu trabalho. Eu chegava, já ia fazendo amizade e conseguia trazer o dinheiro de volta”. Andou tanto que perdeu as contas do tanto: “A gente para pra fazer as contas e não dá nem pra contar nos dias o tanto de coisas que eu vivi. Agora, conto em montes de anos”.

Há 24 anos – um dos montes que conta – ele começou a pagar a casa própria na Vila Paulista. Na época, Bauru era para ele como um “reinado dourado”. “Era a cidade que mais crescia. Vinha gente de todo lado porque até médico a gente tinha”. Recorda que trabalhava como motorista e tinha orgulho de ouvir falar da sua cidade: “O pessoal vinha aqui fazer refeição porque era tudo muito barato”. 

A vila, pequena e pouco desenvolvida, quase não tinha infra-estrutura. Encanamento em construção, muito mato em volta e as ruas, pura terra. Ocidenes não se importou. “Pensei que aos poucos, as coisas iriam melhorando”. Trouxe a mulher, grávida da segunda filha, e a primogênita, na época com 4 anos. Foram construindo a casa, simples mas propriedade deles. 24 anos se passaram. As filhas estão grandes, um genro dois netos vieram e Ocidenes está terminando de pagar a casa. “Agora, falta só um ano e meio”. Na Vila Paulista, no entanto, quase nada mudou. 

As ruas ainda são de terra, não tem boca de lobo e há muito mato em volta das casas. Seu Ocidenes guarda uma decepção em duas doses: pela situação e por decepcionar-se. O orgulho com que fala da Bauru do início, parece atravancar suas reclamações e deixá-lo com remorso. A todo momento ele repete: “Mas aqui, ainda é muito bom para se viver” e, entre os relatos de decepção, abre um sorriso ou outro e retoma algum ponto positivo da cidade que o acolheu e que ele fez sua. “Amo essa cidade, mas não pensei que seria assim. Foi por causa do monte de prefeitos corruptos. É isso. Bauru é uma linda cidade”. 

Esse otimismo misturado ao exercício de aceitar a realidade que nos cerca, me deixa confusa. Me despeço de seu Ocidenes sem vontade alguma de ir embora. Peguei o seu telefone e penso ainda em ligar. Entrar na casa dele, ouvir um pouco mais e quem sabe, esclarecer minhas dúvidas. Fico relembrando toda a amabilidade que, em apenas 40 minutos de conversa, ele me passou sem esforço algum. Também penso se ele é feliz como me disse ser. “Eu sou feliz sim. Construiu minha vida aqui. Tem que ser, né?”. E, principalmente, imagino todas as outras histórias que ele deixou subentendidas quando me disse sobre tanto de coisas que viveu e as tantas contas que já perdeu. 

(Logo menos, coloco uma foto do seu Ocidenes por aqui!)