31.12.08

Algema

Está aceita a condição ingrata da solidão constante em meio à multidão. Está aceita a condição, cuja escolha é via de mão única, da entrega parcial. Saciedade egoísta. Egoísmo tal, que está aquém de julgamentos, por ligar-se, também ingratamente, à escolha não feita de uma condição aceita pelo cansaço. Quando se fala em meio ao turbilhão as palavras se dispersam. Saem uma a uma, em uma desunião angustiante, tal qual aos ventos e vozes que fazem turbilhão.

14.12.08

Passeando

Abri os olhos. Quando o sol já sonhava, a lua vigiava e as estrelas sorriam, meu quebra-cabeça brilhou estilhaçado pelo chão de espumas que sustentavam a cama que tantos sonhos visitaram. Cada ínfima peça do todo essencial espalhava desenhos irreais pelos cantos escorregadios da minha bolha opaca. Recolhi as peças, uma a uma, vigiando o escorregadio que me assombrava em gritos por todos os lados. Não hesitei em furá-la. Estilhaços coloridos pelo brilho do arco-íris estouraram pelo caminho que dividia céu e chão. Com as peças agasalhadas num embrulho de cetim, saí em busca de ventos que pudessem organizar a fragmentação e tornar reais os desenhos dos cantos espumados. Os ventos, porém, confusos quanto às torrentes e as marés, fizeram mais fracionadas minhas peças espumadas, misturando em cores fartas de nuances o que antes era cada qual. Juntei as nuances e parti à procura de rios correntes que levassem as peças a se acertarem por entre o fluxo de água límpida que parte à procura do encontro celestial. Os rios correntes, contudo, por mais que tentassem separar minhas nuances por entre as águas claras, foram vetados pelas companheiras cotidianas de percurso. E nas pedras que moram nos fluxos de água límpida e clara perdi mais de minhas preciosas peças estilhaçadas pela noite e fracionadas pelo vento. Em busca do que sobrou, entre cores e pedaços parti mais uma vez. Resquícios do que fora a minha bolha escorregadia exigiam olhares de atenção, entremeados nos desenhos borrados pela incerteza do vento e a barreira das águas dos rios. Parti mais uma vez. As peças não mais estavam agasalhadas. O meu embrulho de cetim consolador se encantou com uma das pedras do rio e, a cada dia, trava uma nova luta pelo seu amor, contra a força das águas que insistem em querer levá-lo para longe. Talvez, junto das minhas peças. Segui as águas do rio e a inconstância dos ventos, que por vezes, em dias serenos, tinha a doçura das mãos de mães. Desci as margens, segui águas, tempos e lembranças. Lembranças escorregadias e opacas, tal a bolha que um dia não hesitei em desfazer com um único encostar. Próximo ao encontro esperado, ousei duvidar do caminho. As lembranças e o tempo, quando juntos fundem-se em saudosismo. Saudosismo, quando acompanhado pela incerteza dos ventos e a fúria das pedras, funde-se em desespero. Ousei duvidar. As peças, porém, olharam-me tristonhas pelo amargo fim da incompletude. Pelo fim despedaçado de saber-se sem um ponto final. Algo como não conhecer o gozo de deixar-se cair na grama, adormecer os olhos e espreguiçar os dedos dos pés com a calma justa do fim. Deixei-me contagiar pelo tristonho caminhar interminável das peças e segui. Restolhos de ânimo embalavam meu caminhar. Segui e cheguei ao encontro celestial tão sonhado pelas águas dos rios, pela fúria dos ventos e pelas minhas peças, levadas e fartas de experiências e nuances. Cheguei ao encontro celestial invejado pelas pedras que, numa força sempre vã, buscam impedir as águas de alcançar o fim a que nunca chegarão. Cheguei ao encontro celestial que só se dá quando rios correntes chegam ao mar e num movimento de felicidade suprema unem o sal e açúcar em um agridoce singular. Opostos que buscam o elo pelo círculo, entregando-se às diferenças com intensidade capaz de transformá-las em ingredientes saborosos. Círculo cujo início e fim estão no encontro de alegria suprema e instantânea. Rio e mar encontram-se e despedem-se no mesmo encontro celestial, preparando-se para o novo caminhar cujo ápice é o encontrar para despedir-se. Recolhi, enfim, entre as águas, as ondas, e os grãos de areia minhas peças sabidas e agridoces. Recolhi as peças e as dispus em forma de escada. Elas sorriram, agora no seu fim. Juntas, traçando em desenhos espumados, porém menos fragmentados, o ápice do meu círculo de encontrar para despedir-me. Eu, cansada e ansiosa, preparava-me para a subida sorridente que me esperava.