19.5.09

Roda mundo e sol

Nada mais seria necessário. Um momento desses, que as canções clichês fazem parecer comuns. Em que a fala torna-se desnecessária. Ali aquele momento era real. Acontecia em partes completas. Todos em volta esperavam o mesmo espetáculo. Alguns ainda precisavam das palavras. Alguns sem dar-se conta de toda a grandeza que morava por ali. Nós não. Nós sabíamos de tudo aquilo. E, ainda que sem comentar, sabíamos juntas e da mesma forma. A canção palpitava. Se espalhava como uma melodia de anjos, sussurrada durante um cochilo em uma nuvem. O som ia e vinha. Calmo. Diferente de tudo o que se ouve por ai. A cultura indiana presente na terra mãe. A terra que acolhe gente. Seja de onde for. Gente, apenas. E eis que fomos também acolhidas. Com toda a simplicidade das almas desejosas de paz. Sob mantos de alegria constante, fomos acolhidas na terra da Bahia mãe. Não se pode dizer que apreciávamos e espetáculo. De tão extasiadas, a apreciação tornou-se segundo plano. Sentíamos. E ele, o astro-rei, participava do ápice sem ao menos perceber. Fazendo jus a sua meta diária de ir e vir. E começou a ir. O horizonte todo a abraçá-lo. No mais completo dos abraços, aquele que vem devagarzinho. O Sol descendo horizonte abaixo como as cortinas de um teatro que se fecham deixando-nos sensações em aberto. Sensações que se alastram por dias e vidas. O horizonte. Ah o horizonte! Tanta coisa mora atrás do horizonte. O renovar de todas as esperanças se faz a ver o quanto existe além de todas as linhas limitadas, a ver o mundo belo que se faz além do horizonte. Lá mesmo, onde mora o Sol da Bahia, que a cada fim de espetáculo terrestre inicia, por essas terras, um espetáculo celestial. Nós sabíamos, sem saber, de tudo aquilo. dividíamos aquele momento como criança dividindo chocolate. Porém, o fazíamos com todo o desprendimento e a alegria de compartilhar, entre queridos, o sublime do mundo. A música indiana continuava. Soltávamos àquela brisa anseios e agradecimentos. Em balança. Nenhum a mais, nenhum a menos. Era tentador imaginar-se que de tão lindo aquele universo ao redor conspirasse com tudo o que houvesse de feliz. E eis que faziam-se presentes os mais profundos anseios. Aqueles guardados nas gavetas do esquecimento pelo medo do não realizável. E que, a partir dali, ficariam, pela esperança que fora renovada, ao alcance das nossas mãos. Mãos que, agora, entre companheiras de viagem, se davam em pról do infinito.

Carona

Vê-la saindo por aquela porta com, nada mais, do que as mochilas nas costas e o mundo nos olhos, “tinha, teve e tem” para mim um gosto de profunda libertação. Vê-la em duas partes: a dela, que eu já sei tão bem, e a do outro que, por dedução complementar, eu sinto tão bem saber, trouxe e traz a certeza da complenitude. Mas, que fique claro, não me refiro aqui a complenitude ilusoriamente amorosa, das partes incompletas que se tornam inteiras quando juntas. Refiro-me sim, a partes inteiras que se identificam. E deixam ir a sensação das peças que não se encaixam no lego. Vê-la de partida, tão corajosa, personificou toda a minha idéia de força. E com a idéia, a vontade de ir. Eu na porta, quase mãe, na iminência de ignorar essa maternidade precoce que me prende ali a vê-la, com os olhos cheios de lágrimas. Enquanto ela, na sua juventude, que por teoria é também a minha, a descobrir o que há de vida na vida.

5.5.09

Paredes

Ele faz o pedido. O prato dele, apenas. Depois passa o cardápio para ela. Ela olha tudo, com nenhuma pressa. Ele se incomoda. “Mas que cerimônia”. Ela, então, se rende ao igual. “O mesmo que ele, por favor”. O garçom se afasta. Os olhares do dois vão opostamente para nadas. Não se sabe em que pensam, e se pensam em algo.
Talvez analisem o dia que tiveram. Assim, separados. Talvez repensem todas as rugas que viram formar juntos. Um no outro e na mesma sincronia nos dois. No início aquele restaurante era mais colorido. Os garçons sentiam-se constrangidos a cada ida à mesa. A conversa era tão cheia de sons, gestos e formas que era preciso um bom tanto de coragem para interromper aquela unidade dupla. Agora estavam ali. Ela olhando para frente. Olhos parados. Tristeza nos olhos, nas mãos, nas costas curvadas, nas unhas mal feitas. Tristeza por todos os lados. Tenta uma conversa, elogio à cordialidade monótona. “Ta esfriando, né?”. “Ah, um pouco”. “E hoje estava tão quente.”. Pronto. O olhar volta para o mesmo nada. Ele tem rugas. Muitas rugas. A barba esbranquiçada. Os cabelos grisalhos. Uma serenidade enrustida nos problemas que lhe passam pela respiração ofegante. Ele pensa porque ainda insistem naquilo. Talvez pela vergonha de ambas as partes em admitir que não há razões. Insistem por tratar-se a segunda opção de um diálogo. E os diálogos são sempre complexos, demorados e inúteis. Ele tem medo de que as pessoas ao redor percebam sua vontade de sair dali. Voltar para o escritório. Para casa. Para a vida. Também procura manter a cordialidade. “Eu gosto daqui, já faz tanto tempo.”. “É, eu também já me acostumei.”. Costume. Comodidade. Artifícios que formam caminhos sem fim quando o novo se mudou para o fim dos túneis escuros, ofuscando-lhes toda a luz. Os pratos chegam. O tempo que se passou é infinito diante do silêncio cortante e da cordialidade insistente. Enfim, chegam os pratos. Ninguém precisa conversar enquanto come. A cordialidade, então, pode ir embora. Eles comem. “Está muito bom”. “Hahãn!”. Mal acabam, e ele inicia um sequência de ações motoras - já tão conhecida por ela. Limpa a boca com o guardanapo, toma o último gole de água e chama o garçom. “A conta, por favor”. Ela não pretendia ir até o fim, o “Hahãn” foi mais uma forma cordial para evitar a verdade de que não gostava daquele prato. Daqueles temperos. Daquele momento que se repete desnecessariamente todo sábado. A conta chega. Ele paga, com rapidez. “Pode ficar com o troco.” Olha pra ela, talvez pela primeira vez durante todo o jantar. “Vamos?”. Ela apenas se levanta. Pega a bolsa e saem. Quando estão para cruzarem a porta ele coloca as mãos no ombro dela. Levemente. Como em sinal de redenção. Ela olha para ele, talvez, também, pela primeira vez na noite toda. Os dois saem pela porta. Cruzam a rua e se vão pelo caminho infinito do envelhecer. Juntos e na dupla face dos dias iguais. Que de ruins e bons se tornam apenas dias. Iguais.