19.6.11

A vida de cada um como obra de museu

  A professora Adilma Soares de Carvalho e os seus dois irmãos gostavam de dormir todos juntos no chão da sala quando chovia. A chuva era um pretexto para que eles passassem toda a madrugada acordados, conversando. O gosto infantil acabou em uma grande confusão com direito a muitas louças quebradas e algumas palmadas
  A psicóloga Raquel Barros não pode ter filhos, o seu grande sonho. Para superar a imposição biológica, ela criou a ONG Lua Nova, que cuida de mães carentes. Por lá, a jovem Selma Amparo largou as drogas, descobriu a arte de ser mãe e soube, pela primeira vez, como era um abraço.
  O alagoano Adaildo José da Silva, de 26 anos, retomou os estudos há pouco tempo e já pode escrever sobre si mesmo: “Sou trabalhador e tenho muito orgulho de mim”.
  
  Desde crianças ouvimos histórias. O “Era uma vez” das fábulas faz parte do nosso imaginário mesmo depois de crescidos. Desde essa mesma época, no entanto, talvez por uma falha do senso comum, somos ensinados a desacreditar da nossa própria história de vida, buscando na fantasia ou realidade alheia aquilo que está em nós mesmos. Empenhado em reverter tamanho equívoco é que nasceu, em 1991, o Museu da Pessoa.
  Pouco mais de 10 anos em funcionamento e com um acervo de 12 mil relatos, ele torna evidente a importância que tem cada história de vida. Joãos, Raimundas, Marias, Eduardos, Filomenas e nomes de todo lado participam da riqueza documentada pelo projeto pioneiro no mundo. “Um museu virtual de histórias de vida que tem como objetivo transformar a história em conhecimento”, explica a historiadora Márcia Ruiz, responsável pela memória institucional e uma das pessoas que acompanharam e viram surgir cada um dos registros de vida que o museu abriga hoje.
  O projeto começou sem muitas pretensões.  Em 91, a fundadora do museu Karen Worcman apresentou um trabalho sobre a memória da emigração no Brasil, no Instituto Oswald de Andrade, em São Paulo. Por lá, ela conheceu Márcia, que trabalhava no instituto, e o seu trabalho se tornou tão bem falado que ela resolveu manter-se em busca das memórias. Nessa busca, outros grandes parceiros começaram a aparecer. Cláudia Leonor Guedes, José Santos e outros nomes que, juntos, colocaram em prática a idéia até então adormecida.
  Assim, em 92, com a união dos afins, o museu começou a ganhar forma. “Nós pensávamos: “As pessoas pesquisam e cuidam de tantas coisas. Por que não cuidar das histórias de vida?”, conta Márcia. O que eram só idéias, foi se transformando em instituição. As histórias de vida começaram a ser coletadas, mas ainda não se sabia exatamente o que seria feito delas.
  O primeiro projeto realizado pelo museu foi o “Memórias do Comércio do Rio de Janeiro”, a pedido do SESC. Até então, os relatos eram coletados e disponibilizados em CD-ROM. “A história de cada um deveria voltar para a sociedade. Com o advento da internet, nós descobrimos uma forma de viabilizar esse retorno”. Em 2006, então, o portal do Museu da Pessoa entra no ar e a “democratização das histórias” passa a ser feita de forma eficaz.
  Com o advento da internet e a criação do acervo virtual, o Museu da Pessoa ganhou novas dimensões. Márcia sabe identificar os elementos que fizeram com que através do portal, o Museu passasse a cumprir os seus objetivos sociais. “Com o portal nós passamos a ter espaço para receber e disponibilizar as memórias. Nós pudemos produzir e fazer uso das histórias e mostrar para as pessoas que a contribuição de cada um é o que faz a história de um país ser interessante”.
  Aos poucos, a ideia que de início era tímida, ganhou estrutura e visibilidade. O portal foi montado pelas muitas de histórias de vida que de tão reais parecem inventadas. Hoje, além de abrigar mais de 12 mil relatos, ele guarda também 780 vídeos e aproximadamente 70 mil imagens que ajudam a reconstruir a identidade nacional. O espaço é aberto a todos, sem alguma distinção, e as histórias podem ser enviadas pelo portal ou pessoalmente. 
  Na sede, em São Paulo, além de rodas de histórias e outros eventos, os contadores podem gravar seus relatos em vídeos ou levar seus registros impressos. De quando em quando, organizam coleções. E aí aparecem aqueles com “Histórias que mudaram o mundo”, “Minha escola tem uma história”, “Cultura Viva” e outras segmentações que propõem a junção da história de cada um para relembrar o que é o todo. 
  O senhor Salomão Rovedo, por exemplo, viu boa parte do comércio do Rio de Janeiro se formar e reconstrói todo o cenário em sua memória. "Hoje quem passa ali e vê aquele enorme espaço, a terra que um dia foi entulho, poeira e pedra, transformada num pedaço de mata atlântica em plena meninice, sente junto com a alegria que o verde traz, a sensação de que alguma mágica se fez, algum milagre se deu”.